O adicto é egoísta?

26/04/2025

O adicto é egoísta?

Por Raique Almeida

            Quero que você tenha algo em mente: quando digo que o adicto é egoísta, não estou dizendo que ele é maquiavélico ou perverso de forma intencional. Acontece que a doença da conduta adictiva se caracteriza por um tipo de sequestro que ocorre no cérebro da pessoa.

Muita gente pergunta: “Como assim, sequestro?”. Sim, é um sequestro um sequestro que a adição provoca ao isolar a parte racional do cérebro. O que passa a funcionar, de forma predominante, é o sistema límbico, responsável pelas emoções, especialmente pelas amígdalas cerebrais, além do chamado cérebro reptiliano, que lida com os instintos mais primitivos. A pessoa, então, passa a agir como qualquer outro ser vivo não racional como um animal que pensa apenas em sobreviver, sem se preocupar em agradar ou ser empático com os outros.

Da mesma forma, o adicto se transforma em um ser extremamente egoísta, porque está completamente manipulado pela adição. Imagine isso como se a conduta adictiva tivesse a pessoa amarrada de mãos e pés, sem conseguir agir por si mesma. E é aí que a família entra com um papel essencial. O dependente, na maioria das vezes, não consegue se libertar sozinho. Ele está preso, como num castelo, e a família cava um túnel para fora. A saída existe, mas ele é quem precisa escolher atravessá-la. Quando a família consegue reduzir ou eliminar a co-dependência, esse processo de fuga se torna muito mais fácil.

É importante entender que esse egoísmo não vem de uma decisão consciente. É o resultado direto do domínio que a adição exerce sobre a pessoa. Um paciente uma vez me disse algo que nunca esqueci: “As adições chegam como visitantes, se instalam como hóspedes e terminam como donas da casa.” No começo, parece inofensiva. Depois, exige mais tempo, mais atenção, até afastar o adicto de tudo que ama. A pessoa deixa de visitar os pais, de cuidar do relacionamento, de fazer atividades que antes gostava. Fica completamente sequestrada.

Com o tempo, o adicto se isola, fala menos, se conecta menos. Vive em função do consumo ou do comportamento que gera prazer. Não estamos falando apenas de drogas isso também acontece com vícios em jogos, redes sociais, pornografia, comida ou até em relacionamentos. A pessoa viciada em videogame, por exemplo, deixa de se importar se a mãe está doente, se a parceira se sente ignorada, se os amigos estão com saudade. Tudo gira em torno do prazer imediato. O resto perde a importância.

Como dizia Facundo Cabral, “o conquistador, ao cuidar da sua conquista, se torna escravo dela”. O adicto descobre uma forma de gerar prazer instantâneo, de liberar dopamina no cérebro, e passa a viver só para isso.

Apesar disso, ele sofre, sofre profundamente. Quem está nessa condição costuma sofrer mais do que qualquer um. Mas, sob o efeito do egoísmo alimentado pela própria adição, não assume a responsabilidade por esse sofrimento. Em vez disso, culpa os outros. A culpa é dos pais, do parceiro, da vida. E essa transferência de culpa vai desgastando suas redes de apoio. Só quando o adicto finalmente reconhece: “Vocês não são os culpados, eu sou o responsável”, é que essa corrente se rompe.

E há algo ainda mais perigoso: a adição faz a pessoa acreditar que sempre poderá deixar o importante para depois. Acredita que pode faltar ao aniversário do avô, deixar de dar um abraço na mãe, esquecer de dizer “eu te amo”, porque acha que sempre haverá outra oportunidade. Mas, como cantava Alberto Cortez, “depois, toda minha vida é o ontem”. O depois não importa. O que importa é o aqui e o agora. Quantas pessoas conheci que acreditavam que ainda haveria tempo. E esse tempo nunca chegou. A vida passou, ou pior, aquela pessoa querida se foi, e o adicto ficou com a dor de não ter feito o que era essencial.

Por isso, se você tem um familiar com comportamento adictivo, entenda: o egoísmo que você percebe nele não é uma escolha. É a manifestação de alguém dominado por uma conduta destrutiva. E quando você normaliza esse comportamento, está, sem querer, ajudando esse egoísmo a crescer.

Espero que essa reflexão ajude a entender um pouco melhor o que se passa no cérebro e no comportamento de quem vive uma adição.

Referências:

Gabor Maté"In the Realm of Hungry Ghosts: Close Encounters with Addiction

Marc Lewis“A Biologia do Desejo: Por Que a Adicção Não É uma Doença

DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (APA)

Melody BeattieCodependência Nunca Mais: Como Deixar de Controlar os Outros e Cuidar de Si Mesmo

Judith Grisel“Nunca é o Bastante: A Ciência do Cérebro e a Experiência da Adicção

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