Repensando as recaídas na drogadição como repetição e não como reprodução
27/02/2025

Lançamos mão da perspectiva psicanalítica para compreensão da ‘recaída’ por reconhecermos que esse paradigma possibilita problematizá-la como estando para além da simples reprodução do já vivido pelo sujeito. Assim, sustentamos uma via de cuidado que resiste à tendência da busca pelo estancamento desse comportamento, pelo viés da internação, sem que os sujeitos sejam escutados na singularidade das suas vivências.
Há quase um século, Freud desenvolveu o conceito de Compulsão à Repetição que nos permite hoje realizar essa outra abordagem da ‘recaída’, isto é, não mais a tomando de forma generalizada e destituída de sentido, mas passando a entendê-la como uma repetição simbólica na experiência da dependência química.
Do mesmo modo, há quase 30 anos, a psicanalista Piera Aulagnier (1985) lançou luz para compreensão da relação problemática que muitos sujeitos estabelecem com a droga. Ao teorizar sobre a relação passional alienante, entendeu que, nesses casos, um objeto torna-se para o sujeito a fonte exclusiva de todo prazer. Assim, o objeto droga é deslocado para o registro das necessidades, e o sujeito passa a estabelecer com ela uma relação de dependência:
A paixão pela droga, pelo jogo, e, igualmente, aquela que tem como objeto o Eu de um outro referem-se àqueles para quem a droga ou o jogo tornaram-se não somente fonte do único prazer que conta realmente, mas de um prazer que se tornou necessidade (AULAGNIER, 1985, p.151).
No texto Recordar, repetir e elaborar (1914/1969), Freud toma a repetição como a expressão de um conflito psíquico que necessita ser trabalhado para que uma ressignificação seja possível. Em outros termos, é apenas através de um processo de significação que a repetição poderá ser substituída, dando lugar a outras experiências significativas para a vida.
Nesse contexto, constatamos salientada a importância da repetição para o desenvolvimento da atenção e do cuidado. Freud (1914/1969) reconhece que, enquanto a repetição se faz presente, dificultando a recordação, turvando ou impedindo o enfretamento do sujeito com sua história e realidade, também se faz presente por meio dela a denúncia da existência do conflito psíquico. Com efeito, é exatamente pela repetição que se anuncia o conflito e que, dessa forma, fornece pistas e oportuniza a necessária intervenção cuidadosa.
Os fragmentos de casos que utilizamos para ilustrar este trabalho demonstram que estamos diante de sujeitos que estabeleceram com a droga uma relação de total dependência, de modo a torná-la objeto de necessidade e não apenas objeto de prazer. E, ainda, que, ao longo de suas trajetórias de vida, as suas ‘recaídas’ foram tomadas como reprodução do já vivido, portanto, desvalorizadas e até mesmo atribuídas à falta de caráter ou falta de respeito frente ao outro.
Nos discursos dos sujeitos entrevistados, constatamos o intenso sofrimento implicado na relação de dependência estabelecida com as drogas e, principalmente, nas situações de ‘recaída’. Tal implicação emerge com muita clareza nas falas de alguns sujeitos quando questionados sobre a que atribuem essas ‘recaídas’.
Felipe, com 30 anos na época da entrevista, relatou um histórico de 09 internações, afirmando que suas ‘recaídas’ se dão entre uma semana e um mês após o período de internação. Sobre as situações de ‘recaída’, faz a seguinte reflexão: "Ficava sem vontade de viver, sem alegria, sem motivação, ia nos lugares, tinha os companheiros e isso me deixava recair, o álcool também ajudou a recair[...]".
Francisco, aos 27 anos, já se submeteu a 04 internações, sendo que costuma voltar a usar drogas cerca de 04 meses após o período de internação. Ressaltou que suas experiências de ‘recaídas’ estavam ligadas à seguinte realidade: "Muito foi por causa dos problemas, mais é os problemas e muito porque já tinha vontade de usar, e para fugir dos problemas, não querer assumir os problemas. Achei que era uma vantagem usar, mas piora os problemas".
A partir desses fragmentos, que representam as falas de muitos outros entrevistados nesta pesquisa, podemos concluir que procede a suposição de que os sujeitos experimentam intenso sofrimento decorrente de conflitos psíquicos não elaborados. Nessa situação, as recaídas devem ser tomadas como repetições simbólicas, que veiculam sentidos diferenciados e não apenas reprodução mecânica esvaziada de significação. Devemos considerar que estamos diante de casos em que a repetição configura formas de resistência a mudanças, ao mesmo tempo, indicativas de conflitos psíquicos e demandas de ajuda para que ressignificações sejam possíveis, tal como podemos escutar na voz de Júlio:
Às vezes uns 15 dias, mas geralmente no mesmo dia [volta a usar drogas depois após internação]. É difícil, precisa de muita ajuda, acho que se eu tivesse a ajuda da mãe e dos irmãos. Ela nunca se preocupou comigo, pra ti vê, hoje é dia de visita, ninguém veio. (Júlio, 42 anos).
A repetição sinaliza de forma contundente a existência de conflitos psíquicos que não cessam de se presentificar e que exigem elaboração. A ‘recaída’, entendida como repetição, deixa de ocupar esse lugar de vilã e, em decorrência, deixa de ser combatida acima de tudo para ser reconhecida como importante instrumento terapêutico.
Dionísio, aos 27 anos, está no segundo tratamento e relata a seguinte experiência em relação à ‘recaída’:
Foi quando me separei da minha mulher. Na verdade eu gostava dela, mas não queria dar o braço a torcer. Era muito incômodo, muita desavença, muita coisa tava em jogo a gente discutia muito, por coisas pequenas, aí dá aquela fraqueza, né? Tu acha que a única coisa que vai suprir aquilo ali é usando. Eu desisti de procurar uma ajuda, né... eu comecei a beber. Fazia festas, fazia festas, mas as festas não preenchiam aquele vazio.
Não mais entendida como mera reprodução de situações reais vividas, destituídas de sentidos, as ‘recaídas’ veiculam sentidos diferentes, pois que remetem sempre a equivalente